FAZER MEMÓRIA
Como
entender o tecido do tempo que se encarrega de diluir nosso sofrimento, embaçar
nossa lembrança, enganar a memória e, ainda se atribui a autoridade de nos fazer viver,
sorrir, crescer, apesar da dor. O tempo que segundo Machado de Assis “...é um
tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um
castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a
mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro."
Pois bem, o tempo de que falo teve
hora marcada, possivelmente num outro nível, num mundo espiritual, onde fora
definido o dia 30 de outubro de 1997, pelas 04:00 horas. Poucos sabem o que
significa a experiência vivenciada naquela ocasião.
A história vale, e muito, uma retrospectiva.
Durante vinte e quatro anos vivemos a emoção de termos conosco, como sobrevivente
de um primeiro infarto, a figura querida e carismática de meu Pai. Homem
simples, nascido numa fazenda no Município de Sapé, no ano de 1924, sendo um
dos nove filhos do agricultor Severino Henriques e da dona de casa Beatriz Maria
do Espírito Santo que recebeu, na Pia Batismal, o nome de Álvaro Henriques
David.
Colhi, através de diversos
depoimentos, que foi uma criança esperta, cheia de vida e de idéias, um aluno aplicado e um filho cujo
amor transcendeu a esfera das aparentes afeições. Das histórias de sua
infância, trago na minha mente, o seu zelo para com o trabalho e com as coisas
da família, uma vez que aos oito anos de idade o seu pai já lhe confiava a
contagem e vigilância dos frutos que
vendia em sua fazenda, Quem conviveu com meu pai, conhece bem a história dos
caminhões de laranja, tantas vezes repetidas que nos já sabíamos de cor..
Interessado, vigilante, sentiu-se
fortemente atraído pelo saber. Estudou em escola simples, do interior, até o
exame de admissão. Entretanto, para o nosso orgulho e admiração transitava,
tranquilamente pelo universo dos cálculos, da álgebra, da trigonometria e de outros; os
números não tinham segredo para ele. Lembro que a minha irmã Socorro, hoje
Engenheira e Servidora Pública Federal, em sua luta constante com a disciplina
Cálculo, sempre podia contar com nosso Pai que, para ajudá-la, demonstrava toda
a sua aptidão para a famigerada matéria.
Assim, aquele que fora aluno de “Seu
Ferreira”, famoso e temido mestre-escola de Sapé, reproduzia com acerto e boa
pronúncia, frases inteiras em inglês; possuía uma grande capacidade de
interpretação e síntese, guardando de memória trechos enormes e poemas
trabalhados na sua infância.
Dessa escola forjada no desejo do
velho mestre, lembro que meu Pai falava com orgulho de ter sido um aluno
querido, jamais ter levado um só bolo (castigo aplicado com uma palmatória) ou
mesmo ficado de castigo, ajoelhado sobre milho ou com o rosto encostado na parede como era de costume na época Não, meu Pai não veio ao mundo à passeio, sempre teve
uma missão e essa compreendia, entre muitas coisas, não deixar de ajudar a quem necessitasse.
Aos dezoito anos sofreu o seu
primeiro e maior revés, ficou órfão de pai, cuja perda se deu em virtude do
agravamento da Diabetes, doença que vitimou meu avô aos quarenta e poucos anos,
deixando uma profunda marca e da qual papai jamais se dissociou. Nos acostumamos, desde
crianças, a reconhecer o dia vinte e quatro de julho, pela tristeza que o
acometia, durante todos os anos de sua vida, nessa data o vi,
muitas vezes, com lágrimas, silenciosas, que desciam por seu rosto.
A vida mais uma vez seguiu o seu
curso. Meu Pai conheceu o amor de sua vida, também em Sapé, cidade que tanto
amava. Casou com mamãe, menina rica, que estudou interna, no Colégio Nossa
Senhora do Rosário, em Alagoa Grande, dirigido por Irmãs Dorotéias, Ordem
fundada por Madre Paola Frassinette, e que tocava piano e lia em Francês. Todavia,
todo o projeto de educação que a levou a diplomar-se no Curso Normal, aos
dezesseis anos. O status de Professora não foi obstáculo para que
se enamorasse, profundamente, daquele amigo de infância e que se tornaria seu
marido, pai de seus cinco filhos e o grande companheiro de sua vida por
quarenta e oito anos.
Pai extremamente dedicado aos seus
filhos. Dono de uma visão fantástica.Tendo estudado apenas até o Exame de Admissão ao Ginásio, preocupava-se sobremaneira com a nossa formação, inclusive, a escolar.
Assim, cada um de nós começou a sua peregrinação, de Santa Rita para João Pessoa, aos cinco anos de idade quando iniciava seu aprendizado na Capital. As
mulheres no Colégio Nossa Senhora de Lourdes – as Lourdinas, e meu irmão mais
velho no Colégio Arquidiocesano Pio XII. Lembro que minha irmã mais nova,
Socorro, era tão pequena e achava tão difícil acordar as cinco e trinta da manhã
que, somente após estar totalmente vestida era despertada e, quando acomodada
para fazer o trajeto de uma cidade a outra, normalmente o fazia dormindo até o colégio.
Sem qualquer formação específica, papai usava conosco a terapia do amor. Incentivava a cada um de nós a buscar o
crescimento interior, a cultuar o amor a Deus, o respeito ao próximo, a sermos honestos e éticos. De uma simplicidade nata tinha grande devoção ao Nosso Senhor do Bonfim e a Nossa Senhora da Penha. Lembro que insistia conosco, suas filhas para que nos dedicássemos
aos estudos pois, apesar de entender que todos precisavam constituir uma
família, dizia sempre que o melhor marido de uma mulher era a sua autonomia econômica
e financeira.
Não permitia que brincássemos fora
de casa. Minha mãe, na sua visão de mestra, influenciou-o a adquirir excelentes obras que encheram a nossa infância
e adolescência. O nosso imaginário foi invadido por gente como Aliéksei, Ivã e Dmitri
Karamazovi, Anna Karenina, Lady Chatterley, ao tempo em que o faziam, também, o
Pirata Barba Negra, Robson Crusoé, Tarzan, Capitão Rodrigo, Ana Terra,
Gabriela, Guma, Vadinho, Dona Flor , Pato Donald, Mandrake, Zorro, O Fantasma e os Pigmeus, Zé Carioca que conviviam tranquilamente com Emília,
Narizinho e tantos outros personagens. Para meu Pai esse era um mundo
maravilhoso e no qual ele fazia questão que nós entrássemos pela porta da
frente.
Dele tenho as melhores lembranças.
O amor que nos dedicava, o apelido carinhoso de “Londrina”, o gosto pela música de cantores e
compositores nacionais que preferencialmente reverenciavam o romântico, o
regional, os sentimentos puros; a paixão pelos esportes com ênfase, primeiro ao futebol,
destacando os times de seu coração: Botafogo da Paraíba e do Rio de Janeiro e o
Santos de Pelé, como ele assim o chamava e, em segundo o Voleibol, objeto de sua
paixão e que praticara quando mais jovem e a que incentivara minha irmã mais velha - Paula e a mais nova - Socorro, ambas levantadoras
e igualmente apaixonadas.
Entre os momentos mágicos lembro que
ao fazer quinze anos recebi dele uma gargantilha de ouro, um vidro de Fleur de
Rocaille, um livro do Pequeno Príncipe e uma meia fina de seda. Para ele se
iniciava uma nova etapa da minha vida.
Assim era meu Pai. Amava cantar e se
deliciava entoando os versos românticos da Deusa da minha Rua e Fascinação,
músicas que o deslumbravam. Dançava dentro de cada ritmo. O seu excesso de peso
desaparecia na hora de rodopiar no salão nos conduzindo, encantando, divertindo. Todas as
filhas dançavam com ele. O faziam com alegria e prazer. Dança de salão,
marchinhas, frevo, tudo lhe caia bem. A alegria se espalhava por seu rosto,
cobria-se de suor, dançava com o corpo e a alma, como tudo o que fazia, cheio de dedicação, tenacidade, perseguindo uma aproximação com a perfeição.
Trabalhador incansável, testemunhei
muitas e muitas vezes, por ocasião das festas de final de ano, o inchaço de suas pernas e os seus pés
cobrirem-se de bolhas, causados pelo longo período em que permanecia de pé ou
pelo constante ir e vir, normalmente iniciado as três e trinta da madrugada
quando ia para a padaria que, naquela época, trabalhava em três turnos, com três
turmas e um único dono.
Cuidadoso com o seu produto o meu
Pai jamais entregou seu negócio à administração de quem quer que fosse, cuidava
ele mesmo de cada detalhe e jamais deixou de tê-lo pronto na hora determinada, independentemente da
presença ou não dos trabalhadores. Foram incontáveis as ocasiões que ausente o
mestre, meu Pai arregaçava as mangas e preparava o que chamava de fermento que
era, na verdade, a preparação de toda a massa, com medidas e quantidades
precisas, para que fermentasse e ao chegar os operários que dariam
prosseguimento numa segunda fase encontrassem tudo na mais perfeita ordem. Assim era aquele querido e resoluto homem que amava seu trabalho, orgulhava-se de ser panificador.
Habilidoso no trato com os demais
era orgulhoso da forma como se relacionava com seus fregueses. Tinha sempre uma
palavra amiga, um gesto carinhoso para com as crianças, um jeito especial de
ser e fazer amigos. Guardo muito nítida em minha memória as vezes que o vi sair
de casa para transportar uma mulher em trabalho de parto, para socorrer um
doente, para auxiliar financeiramente um necessitado. Não era mão aberta, não
gostava de jogar fora aquilo que adquirira com esforço e suor, mas, sabia
reconhecer a verdadeira necessidade.Proprietário de padaria ramo classificado como Indústria e Comércio, jamais teve uma condenação na Justiça do Trabalho. Num tempo em que o empregador era apresentado ante as varas trabalhistas, sempre como vilão o meu Pai apenas por duas únicas vezes adentrou a uma sala de Audiências, saindo de cabeça erguida e sem sofrer uma só condenação.
Os seus filhos homens, Álvaro e
Fábio, sempre foram tratados com seriedade e amizade. Depositava no mais velho
a mais profunda confiança, via-o como um homem de bem que realmente é, tendo um
enorme orgulho daquele que se incluía entre as primícias de sua descendência.
Ao meu irmão mais novo dedicou um amor característico dos “finais de rama”, era
severo mas capaz de atitudes inusitadas quando o assunto era Fábio.
Ávido por informações tornou-se um devorador de jornais e boas revistas, dentre elas Seleções e Veja, sobre as quais mergulhava, estando sempre em dia com a notícia. Conseguiu junto com sua inseparável companheira que os seus cinco filhos obtivessem
graduação em nível superior. Sorriu, vibrou, dançou e se emocionou cada vez que
alguém conseguia concluir o seu curso. Esse era meu Pai, participativo, um
esteio para sua família e a quem muitos buscavam nos momentos de dificuldade.
Quis o destino que um sexto infarto
o levasse. Sofrera o quinto e em razão de tal fato permanecera treze dias
hospitalizado. De volta a sua casa, o acompanhei juntamente com os meus filhos - Fred e Luzia,
fechando o meu apartamento. O meu coração estava pesado, alguma coisa sugeria
que seria diferente. Ele também pressentia,
me pedira, na véspera de sua partida, na presença de minha mãe que não o deixasse ir para a
UTI, ali sofrera profunda solidão pela falto de um rosto amigo; queria morrer em casa, em seu quarto,
em sua cama, cercado por seus familiares.
Deus atendeu as suas preces. Na
madrugada de 30 de outubro de 1997, descansava de um dia corrido onde
trabalhara na PGE, durante a tarde e no Colégio e Curso Integral, ministrando aulas num cursinho
noturno, preparatório para Concurso Público na área Jurídica; me sentia
sufocada. Por volta da meia noite o surpreendi de pé, necessitava ir ao
banheiro e tomar água. O acompanhei e seu olhar me disse claramente que permanecesse
fora, respeitasse aquele momento seu, de fora, com muita apreensão esperei que terminasse
e com muito cuidado o conduzi até a sua cama. Perguntei-lhe: “Papai o senhor precisa
de mais alguma coisa? Ele me olhou com aqueles olhos castanhos, tão doces e
disse, não minha filha vá descansar. Jamais poderia imaginar que seriam as
últimas palavras que trocaríamos, ele que amava a vida, as flores, os pássaros e os seres humanos esta próximo a nos deixar.
Adormeci. Ao meu lado minha filha e num
terceiro quarto, o meu filho. Ambos adolescentes e tendo por referência
masculina em suas vidas, o Avô. Acordei com o som de um gemido. Corri, encontrei
no corredor o meu filho e fui acompanhada de minha filha. Encontrei meu Pai
com as pernas fora da cama e o dorso em posição muito incômoda. Mamãe ao lado dele
parecia não acreditar no que se passava. Rapidamente pedi que Luzia a tirasse
de lá sob o pretexto de ligar para meu irmão.
Rapidamente busquei o isordil, Fred
amparou Papai encostando –o em seu peito, olhando em seu olhos coloquei o
comprimido sob a língua, segurei seu queixo por alguns instantes e permaneci
com sua mãos entre as minhas acariciando-o, vi a vida ir aos poucos fugindo
daqueles olhos tão gentis e especiais. Naqueles ínfimos segundos lembrei do que
fora pedido pouco antes. Roguei a Deus misericórdia para meu Pai, mas, a dor e o
sofrimento eram tão intenso que nada pode ser feito.
Meu irmão, médico, veio correndo a
pé, de madrugada, apenas de calça de pijama. Do gemido para a confirmação do
óbito foram intermináveis dois minutos.
O olhar de Álvaro não precisou de palavras, a lágrima silenciosa lembrou-me que
era necessário despedir-se daqueles olhos e fechá-los para que visse melhor contemplando a eternidade. A
dor rasgou o meu peito, suavemente fechei –os e , não sei de onde, tirei forças
para agradecer a Deus pela misericórdia com aquele que foi um anjo em nossas
vidas.
Mas, a dor não terminara. Como dizer
a alguém que o amor de sua vida partiu? Como dizer a minha Mãe, tão frágil, que o meu Pai se
fora? Foi difícil, muito, muito mesmo.
A mim restou a certeza de que
perdera uma parte importantíssima de minha vida. A sensação que tive foi a de
que eu que já era pobre fiquei infinitamente mais pobre ainda pois perdera um
dos tesouros de minha existência.
Hoje, 30 de outubro de 2012, pela primeira vez em 15 anos, consegui
escrever sobre o assunto, apenas sei que enquanto houver um resquício de vida,
de sanidade em mim, jamais o esquecerei, jamais deixarei de ser grata por tudo o que
recebi, o amor, a formação, os princípios cristão, a fé, a religião, o respeito
aos outros, isso auferi de um casal ímpar:
Álvaro e Luzia, por quem agradeço e rogo a Deus todos os dia.
4 comentários:
Passei, vi, li e gostei muito desse blog... Deixo um convite para ir até o meu blog e fazer uma visitinha; Serás bem bem vindo(a); http://inkdesignerstampas.blogspot.com
OBRIGADO POR SUA VISITA, JA SEGUINDO SEU BLOG... BEIJINHOS EM SEU CORAÇÃO...
"Não chore não viu? Não chore não viu? Não chore não viu? Nem vá chorar...lalalalala"
É isso que ele tem pra dizer.
Saudades eternas.
Luíza
..."Ninguém lhe atura, mulher preguiçosa!" Kkkk...
Lindo texto tia, fiel em cada letra!
Saudades...
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