PERTENCER
Exercia a crítica não somente no sentido de separação, mas e principalmente de partejamento, de fazer aflorar a verdade, sempre focando a essência até mesmo se para isso fosse necessário refazer caminhos, ideias. Acreditava que tênues limitações justificariam uma liberdade que a levasse a respostas, naquela conjuntura, definitivas.
Com uma atitude que poderia ser erroneamente entendida como inconstante , essa Ucraniana perseguiu, a exaustão, o âmago de suas personagens, imiscuindo-se em seus cérebros, tentando apreender todo o pensar, o agir, os intricados processos de funcionamento da psiquê. Em sua obra o enredo é de somenos, tudo gira em torno dos atributos mentais, psíquicos de cada uma das figuras criadas para dar vida aos seus escritos. Assim Clarice via as suas criações literárias:
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."
"A descoberta do Mundo" , seleção de Crônicas originalmente publicada em coluna semanal assinada pela escritora, no Jornal do Brasil, no período compreendido entre agosto e 1967 e dezembro de 1973 nos trouxe "Pertencer", que mostra a dualidade, o tênue equilíbrio e a genialidade da autora, senão vejamos:
"Pertencer
Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o
ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de
pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia
estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar
pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se
contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a
alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto
preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e
uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não
sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não
pertencer" começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz
parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de
pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me
viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço.
Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria
solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo
embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem
dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas
e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente
embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a
alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em
mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não
seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a
vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos
que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei
apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito.
Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada,
acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então
fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha
mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão
determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma
guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu
ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um
milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a
meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de
solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da
fuga que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a
medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é
viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego
os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no
deserto mesmo que caminho!"
Clarice Lispector, no mínimo será inspiração aos que não se contentam com o óbvio. Uma mulher fantástica que conseguiu conviver e usar sua doença para melhor desvendar a alma humana. Uma escritora que explorou o existencial, fragmentando-o, indo ao fundo de seus personagens como se mergulhasse em si , exigindo respostas. Difícil, porém, fascinante!
2 comentários:
Clarisse Linspector me lembra a minha mãe. Tinha alguns livros em cassa, especialmente depois que ela já estava mais madura... E o texto é de uma emoção intensa!
Um dia posso até lê-la também...
O que mais falar de Clarisse depois desta descrição e de um texto tão exemplar?
Coincidentemente, estou lendo o "A descoberta do mundo" e há muito com o que se deleitar.
Introspectivo? Diria que não. Inspirador e reflexivo? Provavelmente.
Enriquecedor, talvez seja esta a palavra que defina a leitura de Clarice.
Beijos!
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